Um delírio filosófico em tempos de repressão organizada
Enquanto eu gravava um poema sobre Lisboa e os seus caminhos de ver, conheci-os na Praça Camões, no Chiado. Era um casal. Não se apresentavam a mim, mas àquelas pessoas que giram em torno de ideias — eu era uma delas.
Não ouvi o relato desde o início, como convém para entender o enredo. Sei apenas que falavam de uma abordagem da polícia política, cumprindo uma ordem judicial contra eles determinada.
Pela ordem, o crime era: palavras, opinião, expressão — e, pasmem, pensamento.
Do acervo colhido à força da sentença armada, constava um conjunto de textos de filosofia. A polícia reclamava o ao teor dos escritos. Estavam em grego koiné, com rabiscos e desenhos que os tornavam indecifráveis à vulgaridade da interpretação técnica.
Diziam ser fragmentos da chamada Escola Patológica de Mileto, cujos membros — segundo os próprios réus — combinavam metafísica e diagnóstico clínico. Mencionaram o obscuro Psicos de Cós, pioneiro da teoria do delírio epistemológico; Maniakos de Epidauro, fundador da lógica circular da angústia; Neurastenes de Trácia, que defendia que todo conhecimento nasce de um colapso nervoso corretamente interpretado; e Patspsicos Tarantinus, que formulou a “ética da convulsão”, um sistema filosófico baseado em espasmos morais involuntários, provocados por contato prolongado com a verdade.
Os escritos também faziam referência a uma doutrina obscura, nascida na Sicília helênica — região conhecida na Antiguidade como parte da Magna Grécia —, onde floresceu um consórcio de pensamento político apelidado de Mafius PCC/CV. Ali, pensadores cúmplices do poder estruturaram um tratado de corrupção como modo de governo. Entre os nomes preservados estavam Klepticles de Corinto, autor do célebre Sobre a Riqueza Alheia; Sofismenes de Tebas, mestre na retórica da inocência institucional; e o infame Doxapatros de Delos, que desenvolveu técnicas para converter propina em patriotismo. Defendiam que um regime duradouro exige três colunas: uma elite – acadêmica, artística e de imprensa – obediente, entre a conveniência e a conivência, um exército distraído e uma população cínica.
Sem mais forças para explicar, o casal teria respondido em coro à tirania da ordem:
— Isso não é pornografia. É um registro antigo de desenhos do filósofo Leucócito de Leucemia, um dos grandes nomes da filosofia em quadrinhos da Grécia Antiga. Ele fazia par com Hemácia de Anemia, figura notável da filosofia das Artérias Aortas — uma corrente esquecida da região de Cardius Pontus, na Diastólia.
Após consulta ao ínclito e excelso magistrado, a polícia recolheu os papéis. Eram inservíveis.
A que ditadura se referiam, eu não soube. Mas desde então, cada vez que o pela Praça Camões, escuto murmúrios invisíveis entre os os — talvez filosofia. Talvez amor.